segunda-feira, 9 de agosto de 2010

As pequenas vilanias do cotidiano e a morte da gentileza

Meu tio Severino acaba de morrer. Como em tantas famílias, na minha ele era um tio distante, que eu via ocasionalmente quando visitava meus pais, na pequena cidade onde nasci. Estava sempre à sombra de sua esposa, mulher forte e aguerrida, esteio da família. Ele era um cordato, uma pessoa gentil. Não me lembro de uma ocasião sequer em que tenha ouvido sua voz uma oitava mais alta. No telefonema no qual minha mãe me contou sobre seu falecimento, o choro lamentava a perda de uma pessoa querida. E eu, no meio do engarrafamento das oito da manhã, quedei pensando sobre a falta que pode fazer uma pessoa cordata no mundo. O que ele deixou? Filhos, netos, bisnetos. Não deixou bens, feitos, nome de praça ou de rua. Não construiu um império, sequer uma pequena empresa. Não sei bem em que trabalhou ao longo da vida, talvez um homem da terra. Na verdade, não sei muito sobre sua história. Talvez as pessoas com as quais conviveu mostrassem aspectos diversos. Que pequenas vilanias teria cometido ao longo da vida? Foi mesquinho, tirano? Seria sua gentileza fruto do amadurecimento de uma personalidade dura e autoritária ou uma espécie de fardo da resignação do qual sofreu a vida inteira? Tarde demais para especular. Morreu um cordato e no meio do engarrafamento essa qualidade nunca me pareceu tão necessária. A gentileza de dar passagem a alguém no trânsito é recebida quase com descrédito pelo beneficiado, com um riso de agradecimento culpado ou o polegar levantado como uma promessa: também vou fazer isso de uma próxima. Tio Severino dirigia? Não sei. Só sei que num mundo em que se mata e morre por status, poder, fama, para não dar passagem no trânsito ou por não se importar com quem anda nas ruas, sua existência fez um enorme sentido. Boa passagem, tio.

3 comentários:

Gislene Ellery disse...

Sabe o que é o melhor de tudo? É me emocionar lendo seus posts...

Maria Amélia disse...

Que belo texto! Muito bem escrito. Gostei muito. Obrigada pela visita. Espero que gostem dos marcadores bjs. mamélia

apbessa disse...

Adorei irmã, quando aconteceu também fiquei me perguntando quem era o tio, o que teria feito e nem mesmo sabia responder...mas em nenhuma de minhas lembranças o vi esboçar uma cara séria, feia, era a mansidão em forma de gente, acho que a pessoa mais pacata que conheci e que fazia bem estar por perto, sempre o mesmo abraço e a demonstração do mesmo carinho depois de tantos anos passados, foi assim quando lhe abracei por esses dias quando estive em campos Sales. Que Deus o tenha. Ariane.


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