Sábado à noitinha fomos visitar a Feira de Artesanato do Ceart, no Centro Dragão do Mar (para os que não são do Ceará, este é um dos nossos cartões postais, um espaço de lazer e cultura na famosa Praia de Iracema, em Fortaleza). Eu adoro feiras de artesanato! Daquelas “pé de chinelo” às internacionais. O que vejo nas feiras de artesanato, em todos os países, é a expressão da cultura local, exemplos da criatividade das pessoas e os novos usos de materiais e técnicas, muito mais que os meros artefatos à venda.
A feira reuniu artesãos de vários locais do Estado e estava muito rica. Peças esculpidas em madeiras, brinquedos (sensação entre os meninos), peças de vestuário, luminárias de resina e escamas (lindíssimas), de cipó, tecidos artesanais, mosaicos e, claro, inúmeros trabalhos em crochê, bordados diversos e pachtwork. Duas constatações que fiz durante a visita acabaram por motivar este post: 1) a quase ausência de peças com utilização de ponto cruz, antes hegemônicas; e 2) o crescimento da oferta de peças com bordados diversos, apliqué e trabalhos em pachtwork.
Uma das artesãs me justificou que as pessoas não “gostavam” mais do ponto cruz. Em que pese a minha visão sobre a técnica, confesso que vinha achando tudo muito lugar comum. As mesmas flores, os mesmos motivos bordados à exaustão e vendidos aos montes talvez tenham esgotado o mercado consumidor.
Conversando depois com a Gis, entusiasta do ponto cruz, sobre a opinião da tal artesã, ela me rebate com o blog Ponto Cruz Levado ao Extremo, da Edidene (http://cruzaoextremo.blogspot.com/) e ficamos ambas boquiabertas. A Edidene, também enjoada das toalhinhas de lavado, resolve se desafiar e borda, em ponto cruz, reproduções de obras de arte famosas: Picasso, Renoir, Cézanne... Borda ainda incríveis fotos e muitos super-heróis! Tive que me render novamente ao ponto cruz que embaralha nossa percepção sobre artesanato e arte.
Na mesma semana, recebo o livro da Trish Burr, Long and Short Stitch Embroidery (http://www.trishburr.co.za/). A técnica apresentada, utilizada na reprodução de flores, beira a perfeição e intitula-se “pintura com agulha”. Utiliza os chamados “long and short stitchs”, que na minha avaliação a partir do Dicionário de Pontos da Lucinda Ganderton que utilizo sempre, pode ser equiparado ao nosso Ponto Matiz. Só que levado ao extremo.
Burr ensina como utilizar o bordado para a reprodução de flores tal qual as pinturas de compêndios de botânica, buscando reproduzir com a maior fidelidade possível a natureza. É quase impossível acreditar que se obtenha profundidade, jogo de luz e sombras e todos os detalhes que podem existir, por exemplo, numa orquídea, com a combinação prosaica de linhas e agulha...
Dias antes, visitando a exposição do Vik Muniz, aqui em Fortaleza, fico mais uma vez embasbacada com os diferentes usos de materiais comuns para expressão da arte. Duas obras da Série Linhas me chamaram a atenção por utilizar linha preta, de diversas espessuras, sobre fundo branco para recriar paisagens bucólicas. Árvores, campos, cercas, pontes. Está tudo lá, no emaranhado de linhas. Os meninos, que visitaram a exposição comigo, adoraram. O extremo da arte de Vik une o grande e o pequeno, assim como os milhares de cruzinhas bordadas pela Edidene formam as frutas de Cézanne ou o rosto de sua avó.
Na feirinha, me encanto com uma toalhinha de lavabo, bordada com ponto caseado sobre o desfiado da barra de bordar. Resolvo compra-la para tentar reproduzir o bordado, que deixa a barra com cara de Rechilieu, muito delicado. Nunca tinha visto a técnica e puxo conversa com a artesã que, pacientemente, me explica como desfiar a quantidade correta de fios para possibilitar o surgimento das flores (veja as fotos). O resultado permite variações a partir da utilização de linhas de cores diferentes.
Saio da feira pensativa. A artesã havia me mostrado outras peças lindas, com a utilização de bordado livre para customizar peças de vestuário, de cozinha, tapetes e bolsas. “Mas tem que bordar pouco em cada peça e não muito cheio, por que senão demora muito... e a gente precisa sobreviver, né?”. É, concordo. Um pouquinho já faz uma enorme diferença. É possível que eu tenha tido sorte e encontrado uma pessoa generosa, que não se importou de dividir comigo sua arte. Prefiro acreditar que existe uma certa cumplicidade entre iguais e o extremo talvez comece e termine no prosaico, na simplicidade.
Imaginei Thish Burr sentada na sala de sua casa na África, pesquisando linhas para as cores de um lírio, a Edidene chegando do trabalho cansada mas ansiosa para terminar o Homem-Aranha do seu pequeno, as alvas toalhinhas de lavabo numa cidadezinha qualquer da região metropolitana de Fortaleza esperando para serem vendidas pela artesã na feirinha, Vik Muniz em Nova York (ou em qualquer lugar do mundo) espalhando o emaranhado de linha preta sobre uma folha de papel em branco e eu, no outro extremo, puxando um fio de pensamento que tenta unir todas estas experiências...
Qualquer tipo de expressão pode nos levar ao extremo, mas às vezes basta um pouquinho de beleza para fazer toda a diferença.